De tempos em tempos, no meio acadêmico ou fora dele, nas situações cotidianas mais corriqueiras ou inusitadas, muitas vezes também na sala de aula, tenho ouvido a seguinte pergunta:
1 - O que é necessário para alguém considerar-se ou ser considerado
um filósofo?
Em outras palavras:
2 - Qualquer pessoa, independentemente se possui estudos
e/ou formação adequada, pode ser considerada um filósofo?
I – RESPOSTAS NA VISÃO DO SENSO COMUM
Na visão do senso comum, diz-se, por exemplo, embora não
seja do consenso de todos, que:
1 - Qualquer pessoa pode ser um
filósofo, conquanto que possua suas faculdades intelectuais plenamente em
funcionamento, pois se a racionalidade é a primeira exigência para que alguém se
torne filósofo, e se todos os homens possuem racionalidade, logo todo ser humano
pode tornar-se filósofo.
No que se refere à questão sobre se há a necessidade de uma
formação em filosofia para ser considerado e/ou considerar-se filósofo, diz ainda
o senso comum que:
2 - Não é necessário possuir um
conhecimento formal em filosofia, nem construir um sistema, nem tampouco ter o
aval da instituição que confere o título de filósofo. Isto é:
3 - Que, tal qual um dia defendeu Aristóteles, a filosofia nasce de um
sentimento, não de uma formação acadêmica ou de um título conferido por homens.
Por esta via, segundo os defensores desse discurso, o sentimento
necessário para nascer o filósofo em nós é o espanto: o espanto diante da
realidade, o qual nos deve impulsionar a indagarmos.
II –
RESPOSTAS NA VISÃO CRÍTICA
Os argumentos acima, estruturados sob silogismos,
envolvem-nos em princípios lógicos que, como talvez desconheçam muitos, tentam-nos
convencer do seu status de veracidade e/ou de verdade. Entretanto, em oposição férrea
aos defensores de tais disparates, afirma-se e reitera-se: lógica nem sempre é
sinônimo de verdade; lógica nem sempre é sinônimo de veracidade.
A fim de elucidar o que se diz, tomemos um simples
exemplo de argumentos lógicos, mas que são falsos dentro do quesito veracidade
e/ou verdade, a saber:
1- O
senso comum diz que o amor é cego;
2 - O
senso comum também diz que Deus é amor.
Logo, por
uma ordem lógica, poderíamos absurdamente concluir:
3 - Que,
todos os cegos, além de trazerem o amor em si, são deuses.
Ou seja, como defendera Aristóteles, o argumento
lógico só traz um teor de veracidade ou de verdade (só pode ser válido) quando
existe nele uma adequada correspondência do pensamento a coisa real.
Esclarecidos esses pontos, vamos agora então à
questão sobre "O que é preciso para alguém poder ser e/ou ser chamado de
filósofo?".
II
O simples
fato de ser-se homo sapiens e estar em plenas faculdades mentais não dá a ninguém
as condições para ser um filósofo.
Os homens, diferentemente de todos os outros seres,
não nasceram pré-determinados para nada, muito menos para o exercício pleno da
razão.
O homem nasceu, diferentemente de todos os outros
seres, com um "que-fazer" humano, ou seja, com uma abertura para “ser”
ou “não ser”: alguns homens se educam (não se confunda o educar-se com o
meramente socializar-se ou adquirir cultura), se humanizam (no sentido de se
emancipar intelectualmente), e outros se animalizam, no sentido pejorativo e
minimizado da palavra.
Em outras palavras, nascer homem, homo sapiens, não
dá a esse ser o status de humanização. Leia-se Kant, em sua obra “Sobre Pedagogia”,
que diz: "Os homens precisam de
cuidados e de formação"; "o homem é aquilo que a educação dele
faz".
Isto é, filósofos não nascem filósofos simplesmente
porque – enquanto seres humanos –pertencem à espécie homo sapiens e/ou gozam de
boas faculdades mentais.
Se ainda resta alguma dúvida, atente-se para a
teoria Aristotélica sobre o ATO e a POTÊNCIA. O Ato é aquilo que se é; e a
Potência é aquilo que se traz em si, mas que ainda não se é, que no Ser ainda não
se realizou.
Para a passagem do Ato para a Potência é preciso a
intervenção de um Agente Transformador, ou seja, para Aristóteles, o homem é um
ser social e um animal político.
Nesse sentido, filósofo não é aquele que cria ou
constrói algo do nada: o único ser que faz isso, seja lá quem ele for, acredite
quem quiser, é Deus. Isto é, sem fundamentos, fundamentações, ainda que em
grupo, ainda que de maneira dialógica e coletiva, não se filosofa, não se
constrói conhecimentos, mas apenas se socializa a ignorância.
III
Com esse discurso, todavia, não se está dizendo que
somente aqueles que passam pelos sistemas acadêmicos é que podem ser chamados
de filósofos. Hoje, com o avanço das novas tecnologias da informação, os
espaços de aprendizagem se tornaram mais amplos. Ainda assim, o problema
permanece: a falta de autonomia intelectual.
Autonomia intelectual não é somente ser capaz de
raciocinar com argumentos lógicos, mesmo porque, como já dito no início, mas
que aqui ainda vale redizer, lógica nem sempre é verdade, lógica nem sempre é
veracidade.
Um homem, pensa-se aqui, para ser filósofo de fato,
tenha ele formação acadêmica ou não, precisa ser dotado de inteligência.
Alguns, nessa hora, talvez se perguntem: mas o que
é inteligência? E mais: Todos os homens, simplesmente por pertencerem à espécie
humana, por serem homo sapiens, já não são inteligentes?
Muito além do sentido vulgar que tem sido dado ao termo “inteligência”, que a
identifica com as meras capacidades de aprendizagem, Nietzsche responde: "A inteligência é a vida que clarifica
a própria vida".
Nietzsche diz-nos mais: "O filósofo é o homem do amanhã; é aquele que cultiva a utopia; é
aquele que recusa o ideal do dia”.
Sendo assim, para aqueles que acreditam que
qualquer ser humano, simplesmente por pertencer à espécie homo sapiens, é por
isso também dotado de inteligência, perguntamos-lhes:
1- Quantos de nós temos diuturnamente lutado para
clarificarmos as nossas próprias vidas?
2- Quantos de nós temos recusado o ideal do
dia?
3- Quantos de nós temos cultivado a utopia?
Não sejamos ingênuos! Frise-se: o que Aristóteles chamou de Espanto,
Heidegger chamou de Angústia e Sartre de Náusea.
Quando Aristóteles disse que do “espanto” faz-se
nascer o filósofo, ele não quis dizer que o espanto é o estado de ou do
filosofar.
O espanto é apenas a semente. Isto é, todo ser
humano, simplesmente por ser jogado no mundo sem saber a razão e nem o porquê, é
provocado para o filosofar, mas, somente poucos, a partir daí, filosofam e/ou
buscam filosofar de fato.
Após o espanto, o processo é, na maioria das vezes,
trágico. Ou seja, depois do “espanto” diante do mundo, embora não saibam
muitos, só resta ao Ser três possibilidades:
A) Tentar voltar a ser ele mesmo: fingir que nada
lhe ocorreu; querer esquecer o “espanto” ocorrido e voltar à vida dita “normal”
o mais depressa possível;
B) Não conseguir superar “o espanto”: não conseguir
refazer-se, isto é, enlouquecer, ter o seu eu destruído e/ou dissolvido na
massa humana (segundo Heidegger, essas são duas outras possibilidades trágicas que
ocorrem com os homens ditos comuns, que não se superam, transcendem e/ou
reafirmam as suas identidades);
Ou, num outro viés profícuo, transcender, ou seja:
C) Filosofar, isto é, questionar o porquê do seu
espanto, tentando superá-lo, seja com ações pró-ativas, seja emitindo um juízo
crítico e avaliativo de valor sobre o mesmo.
Filosofar, nesse sentido, como se pode perceber, é,
além de se espantar, ser capaz de transcender, ou seja, de atribuir sentido à
vida e/ou ao próprio ser que nela fora jogado sem ter pedido e/ou sem saber a
razão e nem por quê.
IV
Dentro desse contexto, as indagações agora seriam
outras, e cada qual responda-se se puder, isto é, Já que o espanto, a náusea
e/ou a angústia fazem parte da vida de qualquer ser humano, a questão é:
Sem o acesso a uma educação de qualidade,
fundamentada (ainda que essa não seja uma regra), quantos de nós logramos,
temos logrado ou supostamente lograríamos de fato algum êxito diante deles?
(dos espantos, náuseas e/ou angústias da vida).
Em outras palavras:
Diante dos espantos, náuseas e/ou angústias
cotidianas, na maioria das vezes, por falta de uma formação, temos quase sempre
tentado voltar à vida dita normal, enlouquecido um pouco a cada dia, ou, num
outro cenário, que por sinal tem sido o de poucos, de fato transcendido, ou
seja, nos transmutado em filósofos?
O que se evidencia é que, hoje, os verdadeiros
filósofos são aqueles que, fundamentados, são capazes de avaliar e dizer o
contrário, de pensar diferente.
Nenhum filósofo é deficiente mental, mas, quase sempre,
em virtude dessa capacidade de transcender, ele é também quase sempre, pelo senso
comum, chamado de louco. Isto é, ser
chamado de louco é um dos primeiros espantos, náuseas e/ou angústias que se
direcionam a todo aquele que, onde muitos não problematizam, decide filosofar
e/ou pensar diferente.
Segue-se então a mesma problemática:
1- muitos,
diante da incapacidade de superarem seus estados de espantos, náuseas e/ou
angústias, desistem de buscar filosofar e voltam a comungar dos mesmos valores
e “verdades” do senso comum que regem o bom senso;
2-
outros, não suportando à pressão de serem chamados de loucos, de diferentes, tornam-se
loucos ou deficientes mentais de fato;
3 –
poucos, como Nietzsche, mesmo ao serem chamados de loucos, apenas filosofam,
transcendem, e explanam respondendo-lhes: “O que dizem em mim ser loucura chamo-a
apenas de saúde interior”.
Ou seja, para ser filósofo, além de nascer-se homo
sapiens, é preciso também fazer-se capaz de transcender, de avaliar e de atribuir
sentido à própria vida e ao mundo em que se vive, buscando respectivamente transformá-la
e transformá-lo sempre que se fizer necessário.
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